sábado, 9 de setembro de 2023

Sobre as “antecipações” na história de Crato – por Armando Lopes Rafael

 

   Tornou-se corriqueiro, ultimamente, alguns historiadores cratenses afirmarem que a “Vila Real do Crato se antecipou – em cinco anos –    ao “Grito do Ipiranga de 7 de setembro de 1822”. A gesta do Imperador Dom Pedro I, como é de domínio público, viabilizou a independência do Brasil, mantendo a unidade deste país continental. Não fora a monarquia, o Brasil teria sido fragmentado em inúmeras republiquetas, como aconteceu na América Central. 

    Proclamam, esses escritores, que tal “antecipação” de Crato a fatos históricos do futuro teria ocorrido por conta da adesão de alguns membros da ilustre família Alencar – e seus poucos agregados – à fracassada Revolução Pernambucana de 1817.  Segundo eles,  Crato teria, também, se antecipado – em setenta e dois anos – ao golpe de estado, liderado por uma minoria do Exército Brasileiro, sob a liderança forçada do Marechal Deodoro da Fonseca, que resultou na “proclamação” da República, no Brasil, em 15 de novembro de 1889. Comentemos, de forma breve, essas duas afirmações. 

    Lembrando, a priori, que, para analisar um fato histórico, exige-se a tentativa de reconstituir a realidade da época em que esse fato ocorreu. Ou seja, temos de retroagir no tempo para entender a história. Mas não só. Para interpretar ações pretéritas, exige-se a análise da mentalidade e psicologia das populações que viviam naquele passado. E, o mais importante, nunca as igualar à realidade e mentalidade dos dias atuais.

    Isto posto, é bom lembrar que antes da nossa independência de Portugal, não existia comunicação fácil entre as províncias brasileiras. Havia um certo isolamento entre elas.  Esse distanciamento era incentivado e mantido pelas autoridades portuguesas. A população da colônia não raciocinava, naquele tempo,  em termos de “um território unitário brasileiro”. A Província do Pará, para citar um único exemplo, tinha mais ligação com Lisboa do que com o Rio de Janeiro. Por isso, a revolução da Inconfidência Mineira de 1789 – que pretendeu implantar a República naquela província, cem anos antes do golpe de estado liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca em 1889 – ficou restrito apenas à Minas Gerais.

   Ademais, cerca de 80% da população das províncias brasileiras viviam na zona rural. Existiam, àquela época, poucas cidades. Além de escassas, essas cidades não tinham uma integração eficiente por falta de estradas e comunicação. O que impedia suas populações de acompanhar as notícias de outros municípios, mesmo sendo uma vila próxima. 

   Voltemos à participação da Vila Real do Crato na Revolução Pernambucana de 1817. Como bem afirmou o historiador republicano J.de Figueiredo Filho, no seu opúsculo “História do Cariri”, volume I, edição da Faculdade de Filosofia do Crato:

 “Muito se tem discutido em torno da Revolução de 1817, na Vila Real do Crato. Foi movimento efêmero, que durou apenas oito dias. Ocorreu a 3 de maio de 1817, em consonância com a revolução que eclodiu em Pernambuco. Foi abafada, quase ingloriamente, a 11 do mesmo mês. É verdade que a vila bisonha de então não estava suficientemente preparada para a rebelião que, para rebentar, em Recife, necessitara da assimilação de muitas páginas de literatura revolucionária, da luta entre brasileiros e portugueses, em gestação desde a guerra holandesa e do preparo meticuloso, em dezenas de sociedades secretas, além de fatores econômicos múltiplos”. (FIGUEIREDO FILHO, 1964,61).

      Querer inflar o episódio acima, sobre a participação de Crato naquela sedição, é, no mínimo, “forçar a barra”... Tanto que a primeira obra escrita sobre a história do Cariri (de autoria do jornalista republicano convicto João Brígido) com o título:  “Apontamentos para a História do Cariri”  – publicada a primeira vez em 1888, pela Typografia Gazeta do Norte, de Fortaleza, depois de ter sido divulgado em capítulos, na forma de folhetim, pelo jornal Diário de Pernambuco, de Recife, em 1861 –  não faz nenhuma apologia à participação de Crato na Revolução Pernambucana de 1817. Cita apenas, de passagem, a adesão de membros da família Alencar àquela revolta baseada na cidade de Recife.

     Entretanto, muitas vezes, a história é escrita pelos vencedores. Com o advento do golpe de estado, que passou à história como “Proclamação da República”, surgiu a necessidade de se criar os “heróis republicanos”. Tiradentes e dona Bárbara de Alencar são exemplos disso. 

    Na verdade, a implantação da forma de governo republicana, na nossa pátria, não representou nenhuma conquista para a sociedade brasileira. Antes, foi um retrocesso em muitos aspectos. A começar pelo fato de os golpistas terem rasgado a Constituição Imperial, a primeira  (no julgamento de alguns juristas uma constituição avançada para a época), e a mais duradoura (vigorou durante 67 anos) dentre todas as 07 (sete) constituições que o Brasil já teve. Seis delas escritas na atual  República. Um caso raro na história das nações!  

     Há uma contradição, de clareza solar, nessa Revolução Pernambucana de 1817: ela teria sido feita em nome da Liberdade. Mas a primeira coisa que os seus líderes fizeram, (no esboço de uma projetada “Constituição”) foi descartar a libertação dos escravos negros. Ora, a escravidão negra se constituía na maior chaga social da sociedade pernambucana daquela época. Não há nenhuma menção à escravidão nesse projeto constitucional. O que leva a entender que a escravidão foi mantida pelos interesses econômicos dos revolucionários. 

    Ou seja, para salvaguardar suas prioridades, já que, “suas lideranças revolucionárias eram constituídas por homens abastados, militares de alta patente e religiosos. A participação popular deu-se em maior parte, não por espontaneidade, mas conduzida por laços de domínio, seja de senhores sobre seus escravos, seja de senhores sobre seus apadrinhados” (Cfe. tese de doutorado do historiador Breno Gontijo, autor da dissertação “A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817”. (Universidade Federal de Minas Gerais, 2012).

     Sobre outras contradições da Revolução Pernambucana de 1817, bem como da participação de Crato nela, teremos ainda muito a comentar. Trata-se de assunto para os próximos artigos.


(*) Armando Lopes Rafael é historiador.