domingo, 20 de novembro de 2022

Crato: uma cidade marcada pelo pioneirismo – pesquisa e texto de Armando Lopes Rafael (*)


História

   Por volta de 1741 surgem os primeiros registros do aldeamento de populações indígenas, pertencentes ao grupo silvícola Cariri, no local onde hoje se ergue a cidade de Crato. Era a Missão do Miranda, fundada por Frei Carlos Maria de Ferrara, religioso franciscano capuchinho, nascido na Itália. Este frade ergueu, no centro da Missão, uma humilde capelinha de taipa (paredes feitas de barro) coberta com folhas de palmeiras, árvores abundantes, naquela época, na região. 

   O santuário foi dedicado, de maneira especial, a Nossa Senhora da Penha, a São Fidelis de Sigmaringa e à Santíssima Trindade. Em volta da capelinha, foram erguidas as palhoças dos índios. Estes, além de cuidarem das plantações rudimentares, recebiam os incipientes ensinamentos da fé católica, ministrados por Frei Carlos. Aos poucos, no entorno da Missão do Miranda, pessoas brancas foram construindo suas casas. Era o início da atual cidade do Crato, cujo fundador é oficialmente reconhecido como sendo. Frei Carlos Maria de Ferrara.

   Em 21 de junho de 1764, a Missão do Miranda foi elevada à categoria de Vila, tendo seu nome mudado para Vila Real do Crato, em homenagem à vila homônima, existente na região do Alentejo, em Portugal. A partir daí, a Vila Real do Crato foi trilhando a senda do processo civilizatório, sempre inspirada no que vinha de bom do Reino, ou seja, do que chegava da metrópole portuguesa. A marca do pioneirismo passaria a caracterizar a existência do Crato, como veremos nas linhas seguintes.

Anseios libertários

   No primeiro quartel do século XIX, a Vila Real do Crato já se sobressaía entre as congêneres interioranas do Nordeste brasileiro. Residiam na vila, ou nas suas redondezas, famílias abastadas, possuidoras de patrimônio amealhado quase sempre, à custa das fainas agrícolas. Alguns jovens dessas famílias tinham o privilégio de aperfeiçoar seus conhecimentos em escolas da longínqua capital da Província de Pernambuco. 

    Para lá eles se deslocavam, em longas e penosas viagens, que duravam semanas. Viagens sempre feitas em lombo de animais. Alguns desses estudantes retornavam ao torrão natal impregnados de ideias libertárias, assimiladas nas sociedades secretas, existentes em Olinda e Recife. Alguns desses jovens sonhavam com um Brasil independente da metrópole portuguesa. Poucos iam mais longe. Acalentavam o sonho de mudar a forma de governo monárquica – vigente desde o descobrimento do Brasil – substituindo-a, pela forma republicana, esta em experiência nos Estados Unidos da América e França.

   Tais sonhos libertários resultaram no primeiro confronto ideológico ocorrido no Cariri cearense. Os liberais, liderados pelo subdiácono José Martiniano de Alencar – aluno do Seminário de Olinda e adepto dos princípios republicanos da Revolução Francesa de 1789 – foi enviado pelos líderes da Revolução Pernambucana de 1817, para deflagrar o processo revolucionário no conservador Vale do Cariri. 

   Num gesto, corajoso para a época, o seminarista José Martiniano de Alencar “proclamou”, dia 3 de maio de 1817, do púlpito da Matriz do Crato a independência do Brasil, sob a forma republicana. A contrarrevolução veio rápida. Oito dias depois, Leandro Bezerra Monteiro, o mais importante proprietário rural do Cariri, dotado de profundas e arraigadas convicções católicas e monarquistas, encerrou a república do seminarista José Martiniano de Alencar. Este e alguns familiares foram presos e enviados para as masmorras de Fortaleza. De lá foram transferidos, posteriormente, para cadeias de Salvador, na Bahia. 

   Entre os prisioneiros estavam Tristão Gonçalves de Alencar Araripe e Dona Bárbara de Alencar, irmão e mãe de José Martiniano. Após sofrerem as agruras das prisões, por cerca de quatro anos, os revolucionários cratenses foram anistiados pela autoridade real. Por sua lealdade à Monarquia, Leandro Bezerra Monteiro, foi agraciado, pelo Imperador Dom Pedro I, com o posto de Brigadeiro, o primeiro a ser concedido no Brasil.

Um herói chamado Tristão

   Em 1824, eclodiu nova revolução republicana em Pernambuco denominada “Confederação do Equador”. Este movimento uniu algumas lideranças das províncias de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, descontentes com a Constituição outorgada pelo primeiro imperador brasileiro, Dom Pedro I. O movimento repercutiu em Crato. Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aderiu, com todo entusiasmo e idealismo, à Confederação do Equador. Em 26 de agosto daquele ano, foi ele aclamado pelos rebeldes republicanos como Presidente do Ceará. 

   Entretanto, a reação do Governo Imperial foi implacável. As instruções para debelar o movimento eram assim sintetizadas: “(...) não admitir concessão ou capitulação, pois a rebeldes não se deve dar quartel”. Debelado o movimento restou a Tristão Araripe duas alternativas: exilar-se no exterior ou morrer lutando. Escolheu a última opção.

    Nas suas pelejas, Tristão fez vários inimigos. Dentre eles um rancoroso proprietário rural, José Leão da Cunha Pereira. Este utilizou um seu capanga, Venceslau Alves de Almeida, para pôr fim à vida do herói da Confederação do Equador no Ceará. Tristão Araripe foi assassinado, combatendo o grupo armado de José Leão, em 31 de outubro de 1825, na localidade Santa Rosa, hoje inundada pelas águas do Açude Castanhão. Morreu como queria: pelejando.

O mártir da monarquia

    O Cariri continuou, durante algum tempo, dividido entre simpatizantes da ideologia republicana e os adeptos da Monarquia. O confronto dessas ideias foi motivo de contendas as mais variadas. Joaquim Pinto Madeira era o que poderíamos chamar de “caudilho”. Rico proprietário rural e chefe político da Vila de Jardim, era por índole um afeiçoado às coisas da Monarquia. Consta que participava da sociedade secreta “Trono do Altar”, que defendia a monarquia absoluta. Lutou ele, ativamente, contra os promotores dos movimentos libertário-republicanos da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador de 1824. Após a derrota da família Alencar, em 1817, coube a Pinto Madeira, à época ocupando o posto de Capitão de Ordenança, conduzir até a cidade de Icó os 20 malogrados presos políticos. Durante o percurso esse percurso, os prisioneiros teriam sofrido humilhações por parte do caudilho. O que era esperado, face ao temperamento belicoso de Pinto Madeira.

     Em 1831 o imperador Dom Pedro I abdicou do trono brasileiro e foi para a Europa, onde recebeu o título Dom Pedro IV, Rei de Portugal. Os adversários de Pinto Madeira aproveitaram esse acontecimento para dele se vingar. Acuado, o caudilho, com a ajuda do vigário de Jardim, Padre Antônio Manuel de Sousa, armou cerca de dois mil homens, a maioria com rudimentares espingardas, e invadiu o Crato, em 1832, para dar caça aos seus inimigos liberais. 

   Dizem que de tanto abençoar as espingardas dos jagunços e, na falta destas dar bênçãos a cacetes (pequenos bastões de madeira) o Padre Antônio Manuel de Sousa ficou conhecido como "Padre Benze-Cacetes". Pinto Madeira e o Vigário Manuel foram vitoriosos no Crato e cidades da redondeza, mas logo começaram a sofrer reveses.

   Terminaram por se render ao General francês Pedro Labatut, que atuava no Brasil, desde as lutas pela independência. Presos, Pinto Madeira e o Pe. Antônio Manuel foram enviados para Recife e depois para o Maranhão. Pinto Madeira retornou, como preso, ao Crato, em 1834, onde, num júri parcial – composto por antigos inimigos dele – foi condenado à forca, sentença posteriormente comutada para fuzilamento, em face do réu ter alegado sua patente militar de Coronel.

   Conforme o historiador Irineu Pinheiro, na publicação “Joaquim Pinto Madeira” Imprensa Oficial do Ceará, Fortaleza, 1946, página 21:
“Morreu virilmente Pinto Madeira. Conta a tradição, ouvida por mim desde menino, que momentos antes do fuzilamento, ofereceu-lhe um lenço, para que vedasse os olhos, um dos seus mais implacáveis inimigos. Recusou o condenado a oferta (...) Durante anos a fio, fez-lhe promessas o rude povo do sertão, considerando-o um mártir, isto é um santo”.

Um sonho não concretizado: Crato capital do Cariri

   Já em 1828, a Câmara de Vereadores do Crato encaminhava representação ao Governo mostrando a oportunidade de criação da Província do Cariri Novo. Não foi atendida nessa pretensão. A ideia voltou à tona, em 14 de agosto de 1839, quando o senador José Martiniano de Alencar, do Partido Liberal, apresentava no Senado do Império do Brasil projeto de lei cujo artigo 1º dizia textualmente: “Fica criada uma nova província que se denominará Província do Cariri Novo, cuja capital será a Vila do Crato”.

    Os demais artigos desse projeto de lei tratavam sobre os limites geográficos da nova unidade do Império do Brasil que incluíam municípios do sul do Ceará e os limítrofes das Províncias da Paraíba, Pernambuco e Piauí. Com a ascensão do Partido Conservador ao poder, o projeto de lei não prosperou. Anos depois, através do jornal “Diário do Rio de Janeiro”, voltava o senador Martiniano de Alencar a defender sua ideia de criação da Província do Cariri. Tudo ficou só num sonho.

O pioneirismo do Crato

    As brigas fratricidas ficam para trás. Em 1855, a 7 de julho, é fundado no Crato o primeiro jornal do interior do Ceará. Trata-se do semanário “O Araripe”, cujo proprietário é o jornalista João Brígido dos Santos, ligado ao Partido Liberal. No último quartel do século XIX, a população do Crato já não se ocupava tanto das brigas políticas. A sociedade cratense volta suas vistas para conquistas no campo da educação que perduram até os dias atuais. Em 1874, o primeiro bispo do Ceará, Dom Luiz Antônio dos Santos, atendendo à sugestão de um filho de Crato, Padre Cícero Romão Batista, fixa residência temporária nesta cidade, com o objetivo de construir um Seminário, a funcionar como um suplementar do Seminário Episcopal, existente na sede da diocese, Fortaleza, distante cerca de 600 Km do Cariri. Em 1º de março de 1875, ainda de forma precária, o Seminário São José do Crato é colocado em funcionamento.

   Em 8 de dezembro de 1908, o vigário Pe. Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva, convoca as autoridades e lideranças da cidade, com o objetivo de solicitar ao Bispo do Ceará encaminhar a Santa Sé o pedido de criação da diocese do Crato. É formada uma comissão com as lideranças e os notáveis da terra para os trabalhos preparatórios da nova diocese.

    Em 20 de outubro de 1914, o Papa Bento XV, através da Bula “Catholicae Ecclesiae”, cria a diocese do Crato, a primeira do interior do Ceará. Em 10 de março de 1915, o vigário Quintino é preconizado primeiro bispo da nova igreja particular. A partir de então, diversas iniciativas da Diocese do Crato são responsáveis pelo surto de progresso sentido na cidade. Uma delas a criação, em 1921, da primeira instituição de crédito do Sul do Ceará, o Banco do Cariri, que presta grandes benefícios ao comércio e à lavoura da região.

    Em 1922, Dom Quintino torna-se o pioneiro do ensino superior, no interior do Ceará, porquanto dota o Seminário São José de Curso Teológico. Este, subdividido em Curso de Filosofia, feito em dois anos, e Curso de Teologia, em quatro anos, proporciona ao novo presbítero receber no Crato a licenciatura plena. Dom Quintino planta, assim, a semente germinativa da Faculdade de Filosofia do Crato (criada em 1959) que foi, por sua vez, o embrião da atual Universidade Regional do Cariri (URCA), criada em 1986. Esta universidade leva a instrução superior in loco à vasta área do Estado do Ceará. E recebe no Crato alunos residentes nos Estados do Piauí, Paraíba e Pernambuco. Hoje, o Crato é um dos mais importantes polos do ensino universitário, no Nordeste brasileiro.

    Encerremos com outro registro. Em 1946, há quase sessenta anos, quando não se fala em ecologia ou biodiversidade, o Crato é palco de nova ação pioneira. Através do Decreto n° 9.226 de 02 de maio de 1946, o Governo Federal cria a primeira reserva florestal do Brasil. Trata-se da Floresta Nacional do Araripe, que tem boa parte da sua reserva encravada no Município do Crato. Constituída por mata primária, clima ameno, além de possuir boa variedade de fauna e flora nativas, fontes naturais, pequenas grutas e fósseis, a Floresta Nacional do Araripe vem permitindo a pesquisa científica, recreação e lazer, educação ambiental, manejo florestal sustentável e turismo. E o Crato pioneiro. Sempre à frente dos acontecimentos futuros.

Texto e pesquisa de Armando Lopes Rafael


domingo, 13 de novembro de 2022

2022 – Bicentenário da Independência e 133 anos da República – por Armando Lopes Rafael (*)

 

    Esta terça-feira, 15 de novembro, assinalará uma efeméride histórica. Há 133 anos um Golpe de Estado subverteu a ordem constitucional então vigente no Império do Brasil. Sob a forma de governo monárquica, o Brasil vinha vivendo, desde nosso descobrimento, pelos portugueses, em 22 de abril de 1500, até a data de 15 de novembro de 1889.

    Durante 322 anos os brasileiros viveram sob a monarquia portuguesa. A partir de 7 de setembro de 1822, depois da gesta do Imperador Dom Pedro I – feita com a aclamação e apoio do povo brasileiro – declarando nossa independência de Portugal, nossa nação passou a ser a única monarquia constitucional – oficializada e mantida – na vastidão do continente americano. O Império do Brasil durou 67 anos. Portanto, sob a égide de Portugal ou como nação independente, o Brasil viveu durante 389 anos como monarquia. Nos últimos 133 anos, vem vivendo como uma república.

    Em 25 de março de 1824 foi outorgada a primeira Constituição do Brasil independente. Esta Carta Magna foi rasgada pela minoria republicana, em 15 de novembro de 1889. Um gesto feito sem apoio e sem participação do povo. Depois do golpe passamos a ser os “Estados Unidos do Brazil” (grafia da época). Este nome vigorou até 1967, quando numa das 06 (seis) Constituições que a República já teve, a denominação oficial foi  mudada para “República Federativa do Brasil”.

    Nessa condição, a administração pública federal vem se arrastando... em meio às mais diversas dificuldades. Nos últimos 133 anos, algumas vezes – forçoso é reconhecer – houve avanços nesta república. Como também ocorreram muitos retrocessos.

    Neste aniversário da “Proclamação” da República,  somos um povo dividido ideologicamente e politicamente. O que não causa admiração, pois a cada eleição para Presidente da República a nação fica mais dividida. Tivéssemos continuado como monarquia nada disso aconteceria. Existe um ditado popular que diz: Rei morto, rei posto! Ou seja, quando há a necessidade imediata de substituir um rei por outro (por morte ou renúncia), o cargo é imediatamente preenchido.  E a nação continua seu ritmo normal. Sem crises. Com a população unida em torno do novo monarca.  Com os olhos voltados unicamente para o futuro. Bendita monarquia!


sábado, 12 de novembro de 2022

Kleber Maia Cabral e as marcas por ele deixadas em Crato - por Armando Lopes Rafael

  Hoje,12 de novembro de 2022, está sendo lançada -- às 9:00h na Praça Siqueira Campos, em Crato -- a edição nº 51, da revista "Itaytera", do Instituto Cultural do Cariri. Neste número publiquei o artigo abaixo. 

Kleber Maia Cabral e as marcas por ele deixadas em Crato - por Armando Lopes Rafael

                                                 “Autêntico na vida porque coerente com a  religião,                                                       sincero nas amizades e exemplar na família.”
(Frase escrita, pelo Prof. José do Vale Feitosa, para
                                         a lembrancinha da missa do 7º Dia de falecimento
de Kleber Maia Cabral)

     Em 1959, chegava a Crato, proveniente de Fortaleza, um jovem atípico. Vinha assumir o seu emprego como funcionário concursado do Banco do Brasil. Seu nome: Kleber Maia Cabral. Dotado de bom aspecto, feições europeias, nariz adunco, Kleber vestia-se com dignidade. Um homem culto, educado e viril, que deixaria marcas de sua passagem na sociedade e instituições sociais de Crato, onde viveria cerca de 15 anos. Estávamos no início da década 60 do século XX (cronologicamente iniciada em 1959 e concluída em 1969). Anos inovadores, de grandes transformações nos campos da moda e do comportamento humano. Anos de contestação da juventude, no tocante às questões sociais e políticas. Anos de acentuado desprezo pelas tradições seculares... Em Crato não foi diferente. Kleber Maia Cabral, no entanto, teria a sabedoria e o equilíbrio de atravessar aqueles anos difíceis e confusos, utilizando uma máxima: “Nem tudo que é antigo é ruim, nem tudo que é novo é bom” ...  

Crato no início dos anos sessenta

      Considerada a “Cidade-Polo” do Cariri, Crato, segundo o recenseamento de 1960, contava com uma população de 32.054 habitantes. Um aumento populacional de cerca de 30% em relação ao Censo de 1950. Por isso a fisionomia urbana desta cidade se apresentava também ampliada. Verdade que, naquele tempo, não existiam os atuais bairros periféricos do Granjeiro, Parque Granjeiro, Novo Horizonte, Sossego, Lameiro, Vilalta, Nossa Senhora de Fátima (Barro Branco), Mirandão, Muriti, Vila Lobo, Vila Padre Cícero, dentre outros. No entanto, no centro de Crato, em 1960, já pontilhavam praças arborizadas e bonitas edificações. Uma cidade culta, dinâmica e civilizada!

     No hinterland cearense, Crato se destacava no setor cultural/educacional. Possuía até uma Faculdade de Filosofia, a primeira no interior do Ceará. Seus colégios, ministrando o segundo grau, atraíam alunos das cidades do Cariri e dos Estados vizinhos. E não eram poucos: Colégio Diocesano, Santa Teresa de Jesus, Estadual Wilson Gonçalves, Municipal Pedro Felício, São Pio X, São João Bosco, Madre Ana Couto, Patronato Padre Ibiapina, Escola Técnica de Comércio. Além disso, funcionavam em Crato   dois Seminários para formação do clero católico: o São José (pertencente à Diocese) e o Sagrada Família, mantido pela Congregação deste nome, mais conhecida aqui como os “padres alemães”.

    Crato era conhecido como a “Capital da Cultura do Cariri”. Só na Rua João Pessoa funcionavam três livrarias.  Havia uma quarta, na Rua Bárbara de Alencar, a Livraria “Feira do Livro”, com matriz em Fortaleza. Todo sábado, circulava o jornal “A Ação”, mantido pela Diocese de Crato. Havia outros periódicos de menor porte (“O Ideal” e “O Nacionalista” eram os mais conhecidos). Podia-se comprar (no Café Líder, na Praça Siqueira Campos) todo final da tarde, os jornais editados – no mesmo dia – no Rio de Janeiro. Eles chegavam num voo que aterrissava no Aeroporto Nossa Senhora de Fátima, localizado na Chapada do Araripe a poucos quilômetros de Crato.   Ah! ia esquecendo: O edifício mais alto do Sul do Ceará também estava em Crato: a Agência do Banco do Brasil, com cinco andares. O cratense se ufanava da sua metrópole...

Voltando a Kleber Maia Cabral   

   Acreditando que a ordem moral de uma sociedade cristã seria sempre duradoura, Kleber colocava em prática suas características de liderança. Na mentalidade cratense dos anos 60, dominada pelas novidades da moda, da mídia e da tecnologia, Kleber não escondia suas convicções católicas, monarquistas e tradicionalistas. Após sua chegada a Crato, Kleber amealharia um vasto círculo de boas amizades. E orientaria a muitas pessoas. Nas horas vagas, lecionaria no Seminário Sagrada Família e na Escola Técnica de Comércio. Para orientação aos jovens criaria o Círculo de Estudos e Debates São Domingos Sávio. Todos os domingos, pela manhã, proferia palestras para um grupo de rapazes de boas famílias de Crato. Foi nessas reuniões que o conheci. 

   Proveitosas suas explanações! Ele compartilhava conosco seus conhecimentos sobre a moral e a arte; adentrava na História, com seus amplos e múltiplos aspectos; repassava seus conhecimentos advindos de filósofos e pensadores. Anualmente, Kleber realizava um retiro espiritual – numa capela anexa a uma ampla casa do sítio Guaribas – destinado aos jovens. Contava, para tanto, com o apoio de uma tia dele, a Irmã Genoveva, freira da Congregação das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, residente no Hospital São Francisco, encarregada de preparar as refeições dos jovens. O pregador desses retiros era o Mons. Pedro Rocha de Oliveira.

   No início de 1960, a exemplo do restante do país, havia um clima de discussão ideológica na sociedade cratense. Homem de direita, franco, sincero, mas leal, Kleber Maia Cabral expunha suas crenças sem ofender os opositores. Apresentava suas ideias sempre de forma respeitosa, sem alimentar discórdias.  Contudo, sofria o “patrulhamento ideológico” por parte de um grupo de colegas da instituição onde trabalhava. Havia um deles – exaltado pelos ideais marxistas – que gostava de provocá-lo. Esse cidadão costumava presentear Kleber com livros de orientação socialista. 

   E esses exemplares eram sempre oferecidos com dedicatórias de cunho revolucionário, defendendo a utópica “ditadura do proletariado”. Após o golpe militar de 31 de março de 1964, o Exército deporia o Presidente João Goulart e instauraria um governo de exceção, muitas pessoas de tendência à esquerda seriam presas pelas novas autoridades da República. Em face disso, Kleber juntou os livros, com suas dedicatórias provocativas, e devolveu-os ao colega de trabalho, dizendo apenas isso: 

– Da minha parte esqueci todas as suas provocações. E de minha pessoa não partirá nenhum revide contra você. Destrua você mesmo o que escreveu...

   Desnecessário dizer que esse seu colega escapou de ser preso.  Kleber era um homem destituído do sentimento de vingança. Incapaz de aproveitar a derrota de um oponente para humilhá-lo.

Dados biográficos

   Kleber Maia Cabral nasceu no dia 02 de outubro de 1937, na cidade de Fortaleza, filho de Arthur Walter Cabral e Isa Maia Cabral. Seu pai possuía, em casa, um verdadeiro museu com objetos valiosos do passado. Kleber cresceu nesse ambiente cultural, frequentado pelos intelectuais de Fortaleza. E soube conservar essa tendência herdada do pai.

   Chegando a Crato, conheceria a senhorita Maria Iná Feitosa, nascida em Cococi, no Sertão dos Inhamuns, sua futura esposa. O casamento ocorreria em 27 de dezembro de 1963.  Deste enlace nasceriam dois filhos: Maria Isabel Feitosa Maia e Cabral e Laurênio Dias Martins Feitosa e Cabral.

     Depois de casado, Kleber construiria uma casa, em estilo colonial, onde hoje é a Avenida Perimetral Dom Francisco de Assis Pires. Foi pioneiro na construção de boas casas naquela zona da cidade. No entanto, nas proximidades de sua casa residiam famílias pobres e necessitadas. Junto a essas, Kleber fez um trabalho social de envergadura. Quando sua mãe faleceu, coube aos herdeiros um amplo prédio, onde funcionava o Cine Samburá, no centro de Fortaleza. Vendido o imóvel, parte do dinheiro recebido por Kleber foi utilizada para ajudar essas famílias. 

   E, enquanto viveu, ele prestou também assistência espiritual a essas pessoas. Ajudaria a legalizar uniões de casais que viviam sem vínculo oficial; fazia, nessas casas humildes do bairro Pinto Madeira, a solenidade anual da Renovação ao Sagrado Coração de Jesus; preparava crianças para a primeira comunhão.

    Kleber viria a falecer, prematuramente, aos 36 anos de idade, na noite de 28 de junho de 1974. Na hora do seu trânsito para a Mansão dos Justos, as fogueiras de São Pedro começavam a ser acesas, dando a impressão de incontáveis focos de luz clareando a noite escura. O próprio Kleber seria uma dessas luzes. Ele ascenderia, assim, aos umbrais insondáveis da eternidade na busca da luz das luzes: Deus. Com Deus ele se encontra desde então. Em comunhão com o sangue de Jesus Cristo, que purifica a todos nós do pecado.

(*) Armando Lopes Rafael é historiador. Sócio do Instituto Cultural do Cariri e Membro-Correspondente da Academia de Letras e Artes Mater Salvatoris, de Salvador (BA).     

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Apresentando o livro “Bem Aventurada – A História de Benigna Cardoso da Silva”, de Flávio Morais – por Armando Lopes Rafael

 (palavras proferidas na noite de 03 de novembro de 2022, no Instituto Cultural do Cariri, na cidade de Crato)

    É escasso o número dos livros editados abordando a memória de Benigna, a Mártir da Castidade. Que eu saiba – com esta obra que está sendo lançada agora – este número chega a apenas três livros publicados.    Antes do início do Processo de Beatificação desta menina santa, havia apenas publicações  esparsas sobre a primeira Beata do Estado do Ceará. Faz muitos anos, por volta do início deste novo século e novo milênio, li uma crônica sobre Benigna. 

   Recordo bem, e muito bem, daquele livrinho de crônicas – com um nome poético: “Retalho de Seda" – escrito por Laudícia Holanda, professora da URCA, nascida em Santana do Cariri. Uma das crônicas, lá inseridas, tinha por título “A Menina Benigna”. E dela transcrevo os dois parágrafos abaixo:

“Muitas noites (quando eu era criança) perdi o sono pensando na história triste de Benigna. Era a história mais triste que se conhecia em Santana, naquele tempo. Depois eu conheci outras (histórias tristes). (...) Mas nenhuma igual ao barbarismo do crime que abateu o ânimo dos habitantes de Santana e dos arredores, em todo lugar onde a notícia circulou. Principalmente porque Benigna era duplamente indefesa, naquele trágico dia (da sua morte). Como poderia ela, criança que era, imaginar que alguém seria capaz de tamanha ignomínia e que ela era o objeto do sórdido desejo reprimido daquele pretendente? Até aquela época eu não sabia que a humanidade pode gerar seres tão disformes (...)

    O Padre Cristiano, logo após o acontecimento (do assassinato da menina) pediu à família dela que lhe desse o pote de Benigna, marcado para sempre naquela última viagem. Guardou-o com zelo. Quando as chuvas não se faziam prenunciar e o povo sofria a ansiedade da espera decisiva, Padre Cristiano costumava orar. Rogava à Benigna que intercedesse a Deus pelo povo da sua terra; pelos agricultores cujo destino se marca pela presença, ou não, das chuvas, e colocava aquele pote sob a biqueira. Dizia Mamãe que a chuva vinha”.

   Antes deste livro de Flávio Morais, ora lançado (e depois da abertura do Processo de Beatificação, iniciado em 2012), só foram publicados os dois livros sobre Benigna. Na verdade, foram pequenas obras divulgando textos integrantes do Processo de Beatificação dela, na fase diocesana. Agora, temos a oportunidade de ler este novo livro: objetivo, com ordenação cronológica, o qual me foi conferida a honra de apresentar nesta solenidade. Meu agradecimento, de público, ao autor por essa distinção.

    A bem dizer, esta obra de Flávio Morais – escrita em tempo recorde, a fim de ser divulgada nesta atmosfera da renovação espiritual, que pervade o Cariri e adjacências, vai ser útil na divulgação da vida da nossa santinha. Vamos à análise literária deste livro. A priori, após a leitura deste escrito, cabe-nos ressaltar que o livro consolidou o estilo literário do autor. Embora os livros de Flávio sejam ecléticos, pois abordam vários assuntos, predominam neles a temática do regionalismo, com sua beleza e a riqueza de expressões, tão bem explorados  no século passado  por Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, dentre outros. O livro “Bem Aventurada – A História de Benigna Cardoso da Silva” tem o estilo do movimento regionalista.

   Aliás, Flávio já era reconhecido por possuir “um estilo simples, direto e elegante, que prende a atenção do leitor do início ao fim (da leitura)". Nesta nova obra, sobre Benigna, ele adentrou na mentalidade e na realidade social da população do município de Santana do Cariri, no segundo quartel do século passado. Foi um desafio, mas o autor se houve bem na empreita. Manteve a fidelidade na contextualização social e aprimorou a sua criatividade. Contribuiu muito para a maior divulgação da memória da nossa Santinha.

   Flávio definiu bem, no último capítulo deste seu livro, como enfrentou o desafio que lhe foi proposto:

“Não foi fácil para mim aceitar a incumbência de escrever esta história. (...) Caminhar nos meandros da história de Benigna teve seus muitos perigos. A importância enorme que ela ganhou após o anúncio de sua beatificação tornava ainda mais espinhosa a tarefa (...) Foi preciso escutar, registrar, interpretar, concatenar versões, costurar fatos e, o mais desafiador, preencher de forma lógica as lacunas de tempo, de espaço e de impressões”.

       Tanto nas pesquisas, como nas conversas com as pessoas de Santana do Cariri e adjacências, Flávio se credenciou para interpretar prováveis reações psicológicas vivenciadas por Benigna. Sem se dar conta, o autor repetiu um antigo desabafo feito pelo primeiro Presidente do Instituto Cultural do Cariri – o médico e intelectual Irineu Pinheiro – quando inseriu a frase abaixo num dos seus livros: 

   “É empresa difícil a análise de almas, perscrutar–lhes os recessos mais interiores e ocultos” 

    Para comprovar esta constatação, reproduzo a seguir um parágrafo, que me chamou a atenção, neste livro de Flávio. Trata-se de uma reflexão da menina Benigna ante às apreensões e dificuldades do cotidiano dela, e que consta na página 61: 

“Sempre que lhe vinha na cabeça, sem querer e de supetão, algum pensamento que achava impuro, seu coração sensível percebia de longe o peso da malícia se aproximando e ela (Benigna) apertava entre os dedos o crucifixo do (seu) tercinho. Fechava com força os olhos e implorava ajuda celeste para se manter limpa. Isso sempre dera resultado, e por tal razão acreditava sinceramente que alguma força misteriosa a protegia como um escudo daqueles cavaleiros das histórias do imperador Carlos Magno e seus doze pares de França, que escutara de Adrião numa das noites do (sítio) São Gonçalo. Bastava pensar no seu Jesus ali do lado, com a mão no seu ombro, e o coração (da menina) parecia se iluminar espantando pra longe a escuridão do pecado”.

   Admirável como Flávio Morais soube captar, nas páginas do seu livro, o sentimento que Benigna possuía sobre o valor da dignidade humana.  A nossa Menina Mártir foi oficializada agora como uma destas figuras heroicas da Igreja Católica, apesar de ter durado apenas 13 anos a sua curta existência. Existência vivida na orfandade e na pobreza. No entanto, uma vida cheia de elevados e nobres ideais; de uma grandeza de alma que, passados já 81 anos da sua morte, faz ela permanecer viva no imaginário popular da Região do Cariri. E agora está viva também na veneração de muitos fiéis católicos, espalhados pela vastidão do Nordeste brasileiro, na chamada Nação Romeira, que já santificou a pessoa do Padre Cícero, outro filho da Diocese de Crato, cujo processo de beatificação – na fase diocesana – prevê-se seja aberto ainda este ano. 

   Qual a relevância da beatificação de Benigna Cardoso da Silva, para o Ceará e, particularmente, para a Diocese de Crato?  Sabe-se que a Igreja Católica Apostólica Romana não cria o santo, apenas o reconhece. Nunca é demais recordar a célebre frase de São Josemaria Escrivá, o fundador do Opus Dei: “Verdadeiramente a crise do mundo é “crise de santos”. Ou seja, todos os desacertos morais da humanidade – e os sofrimentos daí advindos – decorre, em grande parte, do pouco número daqueles que hoje se sacrificam e oram por si e pelos outros. 

   Através das beatificações e das canonizações, a Igreja dá graças a Deus pelo dom dos seus filhos que corresponderam heroicamente à graça divina  concedida por ocasião do batismo. Ao honrar esses Beatos e Santos, a Igreja incentiva seus filhos a invocá-los como nossos intercessores junto a Deus.

    Ademais, este novo livro de Flávio, trouxe à tona, nas entrelinhas, como foi o processo de santidade da menina Benigna. Desde a mais tenra infância, sem pai e sem mãe, Benigna foi adotada por uma família da zona rural. Viveu em meio aos humildes trabalhos domésticos, bem mais estafantes naqueles tempos do segundo quartel do século XX. Vivenciou uma fé comum, simples, sem êxtases ou visões. Sem ocorrência de milagres ou fatos extraordinários. Benigna não realizou prodígios. Atravessou o anonimato do seu cotidiano, fiel a sua crença expressada num profundo, exemplar e singelo amor a Deus e na caridade para com o próximo. Rezando suas orações diárias. Enfrentando a poeira e o sol quente, no verão; e a lama, na temporada das chuvas, para ir, a pé, à cidade, a fim de assistir as missas e comungar na primeiras sextas-feiras.

      Em meio a tudo isso, sofreu um tenaz e penoso assédio sexual da parte de um rapaz que era seu colega de escola. Contudo Benigna resistiu bravamente em defesa da sua virgindade e pureza. Até que um dia, desesperado pelas recusas da menina, seu algoz a feriu mortalmente com uma arma cortante.  Ao resistir bravamente e heroicamente à investida do mal, Benigna não apenas preservou sua virgindade. Foi além. Consolidou eternamente sua amizade com Jesus. A Beata Benigna Cardoso é hoje um exemplo de santidade leiga, na qual realizou plenamente o Projeto do Deus, Uno e Trino, para a humanidade...

    Senhoras e Senhores,

   Encerrando estas breves palavras, gostaria de relembrar um fato acontecido com o escritor Victor Hugo, da Academia Francesa de Letras, a primeira academia do gênero criada no mundo. Pois bem, certo dia, Victor Hugo recebeu tocante homenagem naquela Academia, sendo chamado de “imortal” por um confrade. E a resposta de Victor Hugo foi admirável. Disse ele:

– “Glória imortal a minha? Nunca! Morrerei e, depois de alguns séculos, somente uns poucos eruditos ainda saberão que existiu um Victor Hugo. Imortal, sim, é a glória dos Santos que figuram no calendário litúrgico da Igreja Católica. Dois mil anos depois de mortos, ainda no mundo inteiro se celebram seus louvores”.

    Meu caro escritor José Flávio Bezerra Morais:  este seu livro tem o condão de preservar – pelos tempos futuros –, a glória de Benigna Cardoso da Silva, a Mártir da Castidade, a nossa Santinha, a primeira Beata do Ceará...

    Chamou a minha atenção a homilia proferida pelo Cardeal Leonardo Steiner, representante do Papa Francisco na cerimônia de Beatificação da nossa Santinha. Na sua fala, o Cardeal Steiner afirmou que a menina Benigna hoje   é invocada como defensora da dignidade de mulher; como um ícone contra o abuso sexual de crianças e adolescentes; como um símbolo contra o feminicídio; contra a violência   praticada com as mulheres; além de se constituir num ícone dos direitos fundamentais das mulheres e nas relações domésticas e familiares. Não é pouca coisa!

     Os tempos futuros difundirão cada vez mais a memória de Benigna. E, nesses tempos vindouros, o livro de Flávio Morais será lido, comentado e pesquisado pelas futuras gerações que nos sucederão. Pois como disse Victor Hugo: “Os santos são verdadeiramente eternos”.